quinta-feira, setembro 27, 2007

Que cultura queremos?

Assisto perplexa a um almoço em praça pública, em jornal, tevê, rodas de conversa. O almoço sobre a carne de quem tenta quebrar modelos tortos de se fazer cultura. A cultura na Bahia era como uma festa, cujo aniversariante convida 100 convidados, mas só concede a fatia do bolo para cinco, seis no máximo. Um bolo construído à custa dos 100 convidados, que quase sempre ficam a ver navios. A sentir fome. As verbas do Fazcultura dessa terra eram centralizadas em Salvador, nas mãos de pouco mais de 20 produtores. 93% da cultura da Bahia era empregada na capital. Migalhas para o restante desse estado, que é quase um continente.

O Pelourinho é hoje o “mártir” para a imprensa baiana. É também o algoz da Secretaria de Cultura do estado, que busca quebrar os vícios instaurados naquele terreno por anos. Sim, os bares estão às moscas, não há graça nenhuma hoje no Centro Histórico de Salvador. Mas é papel do governo pagar as atrações musicais que vão atrair público para as casas noturnas da região? É papel de o governo investir no mercado do entretenimento local? Quando vou aos bares do Rio Vermelho, assisto a programações culturais que os comerciantes locais viabilizam. Assim é na Ribeira, assim é na Orla, assim é em qualquer lugar dessa e de qualquer terra. No vício do Pelourinho, é papel do estado pagar as atrações musicais ou culturais para lotar os bares e restaurantes. Ou pior, investir em atrações privadas, cedendo um espaço público para produtores locais cobrarem ingressos exorbitantes. É essa a cultura que sempre foi, é essa a cultura que essa população espera?

E no meio dessa história toda, um teatro que por anos, sim, contribuiu para a cultura soteropolitana. Espaço para artistas da terra, mas mais do que isso, espaço para um público novo, que desconhecia outros palcos e que podia ali assistir a espetáculos de qualidade, a conhecer aquilo que se chama teatro. O Theatro XVIII, que hora, tem as portas fechadas foi por muito um feliz espaço que promoveu a democratização do acesso a cultura, a formação de novas platéias. Talvez, pouco aberto para artistas não tão próximos da administração do teatro, um tanto focado num séqüito, mas por outro lado, uma casa que dava acesso a um público diferente, a cidadãos que não conheciam outras salas, outros atores, outras peças. Àqueles que não dispunham de convites ou recursos para verr outros espetáculos.

Ok. Esse teatro fez muito pela cultura de Salvador, mas isso não o isenta de fiscalização, visto que há ali recursos públicos. Da mesma forma como é feito nas organizações sociais que conheço. Se eu uso um recurso que é do estado, é meu dever prestar contas. Assim como é dever do estado pedir explicações dos gastos. Se eu afirmo que vou gastar com cultura, que sentido tem eu entregar uma comprovação de agropecuária? Uma nota fiscal que não cabe para aquele universo com o qual estou afirmando trabalhar. Trabalho com organizações e recebo minha remuneração através da estrutura de pessoa jurídica. Se meu trabalho é com comunicação, só posso usar uma nota fiscal da área de comunicação. Não posso ser jornalista e dar a meu cliente uma nota fiscal da quitanda...é natural então, que meu cliente não aceite essa nota, que ele questione. Há algo de errado.

Assim, pergunto. O que há de errado com a Secretaria de Cultura proceder na letra da lei? Essa terra é tão tonta, tão tosca, que quando a lei é cumprida, as pessoas se sentem ultrajadas, humilhadas... não sei. Será que precisamos dar um jeitinho? Por mais gente boa que eu seja, se minhas contas estão pouco corretas, se a prestação não está de acordo, não posso me queixar se o meu parceiro financeiro exige o recurso de volta. Se há erros...se há pendências ou coisas questionáveis. É assim nos lugares em que trabalho, em qualquer empresa. Assim deve ser no estado. Presumo.

Mas não é o que a imprensa mostra. O Governo é execrado por cumprir sua lei. É execrado por exigir que os comerciantes invistam em seus próprios empreendimentos. Que recursos o Governo investe no Rio Vermelho? Que incentivos são dados para os bares dessa região? O que justifica um tratamento diferenciado com o Pelourinho? Sim, falta segurança... como falta segurança no próprio Rio Vermelho, no Campo Grande, na Piedade (onde morro de medo de transitar à noite), em Plataforma, no Bonfim, no Cabula. Falta segurança nessa terra inteira...o Pelourinho não deve ser privilegiado, nem mártir.

Pela primeira vez na existência dessa Bahia, acontecem encontros por várias localidades para se discutir que cultura as pessoas desse estado desejam. Que cultura queremos. Nunca vi isso aqui. Nunca me perguntaram. Nem aos amigos de Feira de Santana, Vitória da Conquista, Senhor do Bonfim, entre tantos cantos...que cultura queremos, baianos? A cultura maquiada? Queremos investimentos da cultura do trio elétrico? Em blocos que cobram mais que nossos salários para tocar uma música pasteurizada? Queremos a cultura de uma dúzia de produtores endinheirados nesse estado que tem pelo menos quatro centenas de municípios? Queremos o Governo do Estado investindo em festas fechadas de camisa? É essa a cultura que queremos? Se é essa, provavelmente, esse sujeito que aí está não é a pessoa...

E quanto ao XVIII torço que volte com todo gás, abrindo as portas para tantos baianos. Mas que volte organizado, bem administrado, como deve ser qualquer instituição. Seja ela da cultura, farmácia, movimento social.

Falo como artista, moradora do Pelourinho, ativista social, freqüentadora do XVIII, sonhadora.

Zé Celso é anacrônico?

Há uns anos atrás eu assistia a uma discussão na minha sala de Estética da Comunicação: Zé Celso Martinez faz há trinta anos a mesma coisa. Era o que dizia uma colega. Eu, aspirante à atriz, mas pouco conhecedora do Teatro Oficina, só fazia observar e nada intervir o responder. Que podia eu dizer? Do Oficina só sabia das suas histórias de resistência à ditadura e de muita gente nua. Oito anos se passaram, mas a discussão continua. Zé Celso é anacrônico, afirmam muitos.

Na primeira semana de setembro (desculpem, ando escrevendo muito atrasadamente), o Teatro Oficina Uzina Uzona teve uma passagem por Salvador apresentando a saga de Os Sertões, a peça inteira, dividida em cinco noites, totalizando 32 horas de espetáculo. Não sei eu se isso é anacronismo, mas sei que em Salvador, mais de 1h30 de peça já é motivo de muxoxo e chiadeira na platéia. Fui tentando responder a essa pergunta, mas confesso que não me é possível. Me falta bagagem, me falta conhecer mais daquele teatro.

Mas me sobrou uma impressão contrária. Não de anacronismo. Se falamos de tempo é preciso reconhecer que é o tempo hoje relativo. E se ele é relativo, o tempo muda de ponto de vista para ponto de vista. Logo, para a estética teatral vigente em Salvador, para a nossa forma de fazer teatro hoje, posso afirmar que aquilo que Zé Celso constrói no palco está longe de ser anacrônico. Talvez ele o seja em sua terra natal, talvez o seja na Alemanha. Mas para os nervos dos baianos, tudo aquilo soa novo, soa uma experiência ainda não vivida.

E eu, aspirante a atriz e jornalista de férias, me vi diante de uma vivência muitas vezes atávica. Quero dizer, que em tantos momentos, me sentia fora desse tempo. Desse tempo de hoje, das mensagens tão rápidas, tão diretas, da necessidade de dizer tudo de uma forma meio mais simples, meio sem consumir muito o tempo do outro, que tem pressa. Atávica por tantos momentos me via dentro de cirandas, de rituais, de transes, mas também de raciocínios. Nada me surpreendia de fato. E não sei se essa falta de surpresas é para alguns anacronismo. Para mim, a novidade era me sentir numa experiência que podia tanto ser próxima daquela que aprendi nos livros como era o modo de assistir ao teatro grego. Uma proximidade, um aroma daquele outro tempo. Também não sei se é isso anacronismo.

Sim, há excessos, a verborragia, há baco em excesso pra Canudos. Há um Antônio Conselheiro liberal demais, há uma enxurrada de auto-referencialidade, há um punhado que cansam, que escapam. Mas há uma disponibilidade de fazer um teatro tão verdadeiro, tão entregue. Tão nu. Tão fiel aos seus propósitos. E dane-se o público. E que venha o público e vá ao centro do palco, como estrela principal. E faça parte. E dance.