sexta-feira, junho 06, 2008

Exercício de Olhar para O Olhar Inventa o Mundo

Leitores do blog que vos fala. Compartilho um texto produzido para a Disciplina "Teorias do Espetáculo", do Mestrado em Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA, ministrada pelo Prof. Cláudio Cajaíba. Bem, explico porque esse texto vai numa linha de referências acadêmicas e consiste num exercício para o curso. Assim, caso haja qualquer estranhamento, já está sendo feita a delimitação.
Fruam e comentem.
Mônica


Sentei-me na primeira fileira do canto direito do palco principal do Teatro Vila Velha e esperei o tempo da campainha marcar o início do espetáculo, O Olhar Inventa o Mundo, com direção de Felipe Assis. A montagem nasceu das poesias em prosa de Cacilda Povoas, que também assina o roteiro cênico ao lado do diretor. Já munida dessas informações, minha expectativa era então estar diante de uma obra sensível e com o compromisso com a palavra.

Um tecido branco vinha do urdimento do teatro até o tablado. Uma risca de giz cruzava o palco. O público dividia-se em dois paredões paralelos, separados pela cena. Dado o sinal, vem o primeiro ator, que como os demais, vestia-se de tons cinzas. O texto, como esperado, já demonstrava a sua indissociável relação com a poesia. Na seqüência, outros atores desempenhando movimentos e partituras físicas.

A maquiagem, assinada por Luiz Santana, transitava entre a neutralidade nos homens e traços mais exagerados entre as mulheres. Criado por Rino Carvalho, o figurino base cinza trazia formas variadas para as mulheres, trazendo movimento para algumas, simplicidade para outras, mas também sensualidade.

As cenas foram assim se dividindo em blocos, demarcados por ambientações diferentes, não propriamente em atos, mas talvez mais propriamente por capítulos. Elementos de cena faziam rápidas evoluções e partiam, não havendo uma cenografia permanente. Os objetos se mostravam assim voláteis, como a bicicleta rosa que cruza a cena, como as bacias onde os atores se posicionam e movimentam, como o muro sobre rodas, no qual são projetados textos e imagens.

Os atores desencadeiam diversas ações físicas, que transitam entre gestos naturalistas e a poesia que se desenha no corpo, incorrendo o risco dessa ser chamada de dança (sem nenhum demérito, mas evitando qualquer confusão conceitual).

Um novo figurino surge: as palavras estão escritas nos corpos, em tecidos leves. Nos dedos anéis, unhas vermelhas: signos de feminilidade. O vídeo, como o giz, inscreve palavras, imagens meio soltas, cujo significado poderiam ser completados com os entendimentos.

Embora houvessem elementos comuns: o feminino, o movimento, a leveza, os encontros, o bordado, a cidade, o domingo, a cidade, o fragmento é a maior tônica. As imagens se constroem e desconstroem em velocidade rápidas, muitas vezes tornando-se impalpáveis.

Do urdimento, folhas de papel caem. Palavras chovem, demarcam todo o palco. Um novo capítulo para a palavra concretizada. Um guarda-chuva sem forro: como não se houvesse como fugir da linguagem – ela está por todos os lados.

Como o nome da peça já delimita: o olhar, o sentido e a compreensão são invenções e naquele espaço, cabe a subjetividade do espectador inventa-la. Tarefa nem sempre fácil, nem sempre obvia. Ainda mais na arte do teatro, cuja imagem é discurso, nem sempre a amplitude da poesia.

Na saída do espetáculo, fui a um café, com amigas atrizes. Em todas, um incômodo: “imagens muito bonitas, mas faltou me dizer algo” ou “era fragmentado demais”. Bem, para discorrer sobre esses comentários-provocações, vou recorrer a alguns autores.

As teorias – Na origem grega do termo Teatro, encontramos uma espécie de diálogo com o nome da peça: lugar onde se vê. Também entre os gregos, está a delimitação da tônica do teatro: a ação, a presentificação dos acontecimentos. O diálogo ou a dialogicidade são também tônicas da linguagem teatral, que embora tenha no monólogo um recurso bastante utilizado, o conflito é um cerne quase que irrefutável.

Ainda que no século passado, muitos dos postulados foram implodidos com a modernidade, a expectativa de qualquer público, mesmo sendo ele de fazedores de teatro, é deparar-se com a ação, o conflito, o diálogo, situações problema. A ausência da ação causa sempre uma sensação de se estar diante de uma outra arte: artes plásticas, a performance (em seu sentido mais ligado à instalação), a dança.

O Olhar Inventa o Mundo faz seu pacto com a poesia, que naturalmente está mais próxima música, da pintura, por não necessariamente ser da esfera do discurso, embora seja a palavra a sua matéria prima. Em seu ensaio, A Escultura do Sentido, Monclar Valverde bem define o papel da poesia: “Ela é, antes, o conjunto possível dos exercícios poéticos perpetrados, ao longo do tempo, por esses seres de carbono dotados de angústia: e seu corpo palpável e visível a olho nu não é senão esse tecido material-i-material de palavras lavradas no silêncio. Mas isto a que chamamos 'palavras' é apenas o suporte físico de seu "corpo"; do mesmo modo que isto a que chamamos "silêncios" - pontuações da estratégia discursiva ou do léxico - não chega ainda a ser o próprio silêncio. O Corpo da palavra, seu in-vestimento, é a interminável escultura do sentido, a re-presença do 'real' na cena da linguagem, a encenação contínua deste processo de presentificação que dá vida a tudo o que existe no âmbito da cultura”.

E a realidade própria dessa obra de arte é travar essa aliança com a poesia. E como tão bem define Valverde, “as palavras não têm a natureza das 'coisas', do 'espaço' ou do 'tempo'. Elas têm a dimensão simbólica das condições de possibilidade das 'coisas', do 'espaço' e do 'tempo'; estruturas que fazem, das relações e perspectivas que constituem o mundo, um 'objeto' em movimento”. Está posto então o desafio para o espetáculo, que se lança numa seara sempre difícil para o teatro, ou seja, incorporar elementos que muitas vezes contrariam pressupostos de sua linguagem. Ou seja, a ação, o conflito, as relações de tempo, espaço. Aqui não há relações aprofundadas, mas sim esboços, aromas. Imagens que entram e saem sem nenhuma obrigação de contar uma história, de desenvolver um pensamento dialógico. O que o espetáculo se inscreve como sendo é de uma espécie de acontecimento expressivo, um exercício de performatividade poética – a linguagem lírica, por si mesma já subverte os referenciais, porém aqui toma a forma de performance.

Como observa, Erika Fischer-Lichte, no texto Performance e Cultura Performativa, “o teatro dramático ocidental enfatizava o tema da motivação psicológica para as ações das personagens, a construção do enredo, os meios das distribuições, constelações e procedimentos cênicos e, desta forma, era induzido a ignorar a função performativa do teatro, o 'acontecimento sem título' trouxe para primeiro plano a função performativa, relembrando sua permanente existência e colocando-a novamente à vista”.

Ainda hoje então, é aguardado pelo público o encontro no teatro com aqueles elementos já citados. A falta deles ainda gera estranhamento. Em verdade, a plasticidade e a valorização das imagens do espetáculo, o aproximam de outras linguagens. A fragmentação impede a estruturação de um desenho de enredo. Mas será a opção de aliar-se a outras linguagens algo problemático ainda hoje? Menos palatável para as platéias? Fazer essas opções, ainda hoje é experimentar um terreno pouco aprofundado, pelo menos no que tange ao Teatro Baiano. É um exercício de engendrar novos caminhos, fazer novos contatos. E para o público, fica um agradável desconforto de ver artes plásticas em movimento, video-poesia, dança-teatro e cumprir a tarefa de completar um sentido que não veio pronto.