sexta-feira, novembro 07, 2008

Comentário sobre Hysteria, da Cia XIX

Certamente o casarão que abrigou o Instituto Feminino da Bahia, escola das moças de fino trato da burguesia soteropolitana do século XIX, é o lugar mais apropriado da cidade para abrigar o espetáculo Hysteria, do Grupo XIX, companhia paulista de teatro especializada em montagens de olhar histórico sobre a vida privada brasileira. A peça, que já tem sete anos de estrada e é a primeira do repertógio da trupe, faz um resgate da vida de cinco mulheres acometidas de histeria e internadas no Hospício Carioca, também chamado de Praia Vermelha.

O clima de repressão sexual, tônica da doença esmiuçada e estudada pela nascente Psicanálise, é a tônica de toda a peça, com respiração bastante própria no prédio escolhido, que restringia seu trânsito às mulheres. Assim, respeitando o espírito da época, o público masculino sobe na frente das mulheres, ficando em sala de espera distinta. Mais tarde, as mulheres sobem e ficam numa sala a parte, no caso das apresentações em Salvador, na capela do colégio. Ao chegarem no salão onde se dá o espaço cênico, os homens já estão posicionados, numa platéia bem montada e afastada das mulheres. Eles estão numa pequena arquibancada e de lá, assistirão distanciados às cenas.

A peça é encenada apenas durante o dia, por volta do fim da tarde, perto do cair do sol - exatamente quando a peça finda. Sem nenhum recurso de iluminação elétrica ou artificial, peça se vale da luz do sol, assim como se valiam as mulheres daquele tempo. As vestes em tons bege e salmon se mostram envelhecidas, também antigas. As atrizes parecem fantasmas de outro tempo, tamanho a realidade que se tornam seja pelo tom da voz e ritmo da fala próprio de uma outra época, seja pelo ritmo que a peça imprime, seja pelo figurino, sem nenhuma pompa, quase desbotado, seja pelo próprio lugar, que foge de qualquer artificialismo próprio ao teatro. Os artifícios e escolhas do espetáculo, de criação coletiva, presentificam aquelas histórias junto com as novas que ali serão contadas.

Já ao redor do espaço cênico, em cadeiras ou sentadas ao chão, sentaram as mulheres do público, que a partir desse momento, deixam de ser público e passam a ser tratadas como internas e acometidas do mal da histeria. A interação com as mulheres permeia a todo espetáculo. A história contada em cena deixa de ser a das cinco personagens apenas, mas também daquelas com quem as atrizes contracenam. Essa aproximação entre atores e público não só irrompe numa interatividade, mas especialmente, na estruturação de uma dramaturgia que completa seu sentido a cada apresentação. As experiências das mulheres do público contribuem como fio condutor da narrativa das mulheres.
Extremamente brancas e pálidas, as personagens denotam seu tom embalsamado, empoeirado, mas também porcelana. As bonecas de uma época que talvez hoje, objetificadas teriam cor tostada de carne, exposta para ser degustada. Se no passado, as mulheres eram louça fina, hoje somos comida quanto mais farta melhor: filé, bunda, morango, melancia.
Nos sonhos esfacelados, gritos suprimidos, julgamentos, opressões, vozes embargadas, as histórias delas atualizam as nossas. Para quem acredita que a emancipação plena da mulher já se deu e que o feminismo é arqueologia, Hysteria mostra no contato com o público atual, nas emoções que sucita que nossas vozes ainda se fazem roucas e poucos dos nossos gemidos são de gozo.
Entre as histórias, o caso de uma menina orfã, deixada na antiga roda, que guardava a vergonha das brancas que "perderam a sua honra" e que adulta ainda se comportava como menina: que destino ela podia ter, se era só e com ninguém seria digna de casar? Melhor então o refúgio da infância e a espera do noivo Jesus, que certamente, nunca viria. A mulher que sempre fora calada e cuja voz sua família nunca aguardara ouvir, passivamente, como era de sua natureza, contava sua história na medida em que ia dialogando com uma espectadora mais velha, estrategicamente sentada ao seu lado. Talvez, momento dos mais difíceis, a escolha da mulher mais velha sentada ao seu lado, revela que os sonhos, embora séculos diferentes ainda são os mesmos e as repressões e opressões não se dão de tão longe. De voz altiva e grave, havia entre elas uma mulher de consciência política, que aguardava após a libertação (virá que eu vi...) do povo negro, a libertação das mulheres. Seu dom da poesia, alma questionadora e volúpia no corpo foram a justificativa da sua internação. Talvez a loucura seja o destino daqueles que têm dúvidas e questionam...por fim, a história da mais sexual de todas, que permitiu viver uma liberdade sexual, ainda pouco bem vista em nosso tempo. Ainda nas rodas modernas, mulher que se deita com quem quer, quando quer, ainda é chamada de puta. Quem dirá em 1800 e fumacinha...
Todas elas, assim como o próprio público eram vigiadas atentamente pela enfermeira, altiva, repressora, cuja voz causa calafrios. Contudo, aquela própria mulher, a serviço do poder dos homens, também tem seu útero, também tem seus calores, também tem seus desejos e este é o grande peso da peça. Mesmo as que servem a um outro poder, são vítimas dele - algozes talvez de sua própria dor.
Hysteria dosa o dolorido com o riso. Coloca os homens como espectadores sérios, distanciados, de um mundo que eles conhecem pouco, mas interferem muito. Como o próprio programa da peça afirma a história das mulheres não é a história somente delas: suas vozes roucas contam a história de seus homens, seus filhos, uma cultura, uma repressão. Hysteria é sem dúvidas um espetáculo necessário para homens e mulheres. Para pensar no nosso tempo, a partir da história das que foram. Qual é a doença de nossa geração, meninas? Somos mesmo donas do nossos corpos? Somos tão livres? Tão libertas? Ou nossa liberdade também não faz parte da liberdade do mercado...de tudo aquilo que está a venda a qualquer preço...
Perguntas...


terça-feira, novembro 04, 2008

2008 pode ser considerado como um ano dos mais interessantes para o fomento das Artes Cênicas no estado. Apesar da produção ter sido um pouco mais fria, com um menor número de estréias, este vem se configurando como um ano ímpar na circulação de espetáculos e realização de festivais. Ao todo, no estado até o fim do ano somam-se 21 festivais, no quais artistas baianos trocam experiências e acessam a montagens de outros cantos do país, quanto do mundo. Salvador sediou três festivais que movimentaram a cena local: Festival Latino-Americano de Teatro, Festival Lusófano de Teatro e o Festival Internacional de Artes Cênicas, que oportunizaram momentos significativos de troca e acesso a outras dramaturgias. Também foi possível proporcionar que os artistas baianos pudessem mostrar seus trabalhos a públicos diferenciados.
Nesse contexto, é que surge o Festival Internacional de Artes Cênicas, que durante os dias 24 a 31 de outubro reuniu um interessante grupo de espetáculos baianos, nacionais e internacionais, misturando um tanto das principais tendências das artes cênicas na contemporaneidade. Além disso, o evento proporcionou atualização da classe artística ao trazer oficinas com profissionais experientes e grupos envolvidos nos espetáculos em cartaz. Esse caráter de reciclagem pode provocar uma nova respiração na cena teatral na cidade, mas também do estado, que recebe estímulos para criação, encontra pares, se reflete.
Assim, estiveram reunidos em uma semana, espetáculos baianos, brasileiros e de países como França, Portugal, Noruega. Também foi possível, ver aplicada em cena as teorias teatrais de Peter Brook, encenador referência nas artes cênicas do século XX. No palco, foi possível verificar os rumos atuais de um teatro cada vez mais da palavra fragmentada, que cede lugar a outros elementos, especialmente a fisicalização. A contradição, a ironia e o pastiche também dão o tom da cena em trabalhos como O Grande Criador, da Companhia do Chapitô, de Portugal. O que também ocorre em Melodrama, uma das montagens da Cia dos Atores, do Rio de Janeiro, que envereda por reconstruir a atmosfera kistch das novelas e programas de rádio.
Outro dado foi a forma delicada ou bem humorada que os trabalhos participantes tiveram para se afirmar politicamente. O trabalho dos portugueses, além de satirizar passagens bíblicas, faz boas referências aos momento atual, relação com países como EUA e as crises econômicas, de valores e culturas. A temática da homofobia foi tratada de forma sensível em Aqueles Dois, enquanto que a repressão sexual e as questões que afetam o feminino são matéria de Hysteria, um dos grandes destaques do Festival.
Da cena baiana, bons trabalhos deram conta de mostrar o que vem sendo produzido na Soterópolis. A montagem Triste fim de Policarpo Quaresma levou à frente a discussão em torno da brasilidade. Já Deus Danado, um dos trabalhos mais interessantes dos últimos anos, deu conta de discutir a humanidade e suas relações, a partir de um olhar nordestino e precário. O sotaque baiano em Shakespeare é a marca da montagem Sonho de uma noite de verão, do Bando de Teatro Olodum, em momento de franca projeção nacional. Já o grupo Dimenti, um dos mais ativos da cidade, levou à cena sua última obra Batata!, sobre o universo nelsonrodrigueano.
O FIAC também foi ponto de encontros e festas, reunindo a classe artística e o público, em shows que vararam a madrugada, na praça Tereza Batista. No palco, os grupos mais pulsantes da cidade como Lampirônicos, Retrofoguetes, Afro Batá, Juliana Ribeiro e a Quadra de Samba, A Volante do Sargente Bezerra entre outros.
No mais, saldo positivo ao festival, realizado com profissionalismo e oportunizando acesso a cultura, com qualidade e preços populares. Vida longa ao Festival. Boas inspirações para as artes cênicas na Bahia.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Comentário sobre AQUELES DOIS

A Cia. Luna Lunera decidiu transpor para a linguagem do teatro o conto Aqueles Dois, do gaucho Caio Fernando Abreu, integrante do livro Morangos Mofados, um dos mais importantes da década de oitenta. Para o palco, os atores recriaram a atmosfera do autor, a tessitura de sua escrita encarnada nos corpos, nas disposições, na palavra revivida, mas também em referências de uma época, seja musicalmente falando com citações de Ângela Ro-ro-ro, Cazuza, Gal Costa, seja resgatando as velhas máquinas de escrever, as formas das luminárias, a memória de filmes antigos.

A montagem de Aqueles Dois transpõe para a cena a dúbia atmosfera de amizade e amor dos personagens Saul e Raul, jovens promissores, admitidos numa repartição. Naquele que era um deserto de almas, como bem define Abreu, aquelas duas almas igualmente especiais se encontraram, se conheceram e ganharam intimidade. Um do Norte, outro do Sul, ambos eram pessoas sós e estrangeiras na grande São Paulo, onde encobertos pelo cinza, nunca se sentiram em casa – exceto até o encontro de um com o outro. Caio convoca então a uma amizade cheia de descobertas, de encontros e Saul e Raul, cujo nome se confunde, facilmente poderiam reconhecer um como se fosse o outro, quase como um espelho. As semelhanças constituíram a liga daquela amizade, que logo causaria estranhamento e desconfiança nos colegas, tipicamente conservadores e como tal, homófobos.

Ao entrar na sala de espetáculos, o público se depara com um tatame como palco. Em volta dele, a delimitação do espaço cênico, com máquinas de datilografar, luminárias de mesa, livros, gavetas, discos, aparelhos de som. Os atores já estão em cena, movimentando-se e fazendo exercícios de contato-improvisação (técnica de dança na qual os corpos se tocam num ponto, desencadeando movimentos a partir daquele encontro). As partituras físicas demonstravam encontros e contrapesos. Encontros, abraços e tensões. Encontro físico, vontades de ir para outras direções. Um dos atores, controlava a entrada do público, bem como lia trechos de cartas de Caio Fernando Abreu.

Os discos, as músicas serviam não só para relembrar uma época, mas respirar o espírito de Caio, mas também montar as identidades dos dois personagens. Por outro lado, toda aquela identidade evoca ícones brasileiros fundamentais para cena gay, que tem como inspirações artistas como Maria Betânia, Cazuza, entre outros dos muitos citados. Essa identificação tanto aproxima de uma atmosfera, quando inicia uma pergunta dúbia sobre o que seriam aqueles dois.

Os quatro atores em cena dividem-se e multiplicam-se na tarefa de viver Raul e Saul, mas também outros trabalhadores da repartição. Conseguem entre si criar um nivelamento na interpretação, onde todos tornam-se parecidos, todos mantém uma unidade e alinhamento na representação daqueles dois personagens. Ao mesmo tempo em que os quatro são dois, a integração dos atores promove que os quatro, sejam dois e sejam um – como assim é o encontro maravilhado de duas pessoas igualmente especiais, igualmente semelhantes, seja em gostos, sejam em gênero. Raul e Saul, como a escolha de seus nomes já indicam, são um Narciso ensimesmado diante do espelho, apaixonado por si mesmo.

A passagem de tempo na peça é trabalhada de forma criativa: o número de vezes, que os personagens vão tomando café, revelam a maior intimidade que vão ganhando, enquanto que as sucessões de bom final de semana, demonstravam a falta de novidade e tédio daquele ambiente de trabalho: um ambiente onde as quermesses, falatórios, olhares, festinhas e rifas serviam como quebra da mediocridade reinante. Eles mostravam-se então diferentes, mais bonitos e interessados em suas solidões.

A peça acerta na adaptação, misturando momentos de ação propriamente dita, com a narração e o apoio na palavra do conto de Caio Fernando Abreu – esse trânsito entre a ação dos atores e a narração do conto se mostram como um deleite, repensando algumas cenas já vividas na própria encenação, lançando mais luz sobre a amizade daqueles dois.

A imagem e a palavra casam com felicidade em alguns momentos. O abraço de reencontro dos amigos, após a perda da mãe de um deles. Os corpos nus em meia luz – luz essa que reflete a tensão do desejo e vergonha de ambos, por estarem desnudos um diante do outro – com a escuridão cortada pela brasa dos cigarros acesos. Por fim, os muitos desenhos feitos por Saul, os grandes olhos sem iris, citados no conto, que aqui ressignificados se mostram como os colegas homófobos atrasados e eternamente presos às suas mentalidades e preconceitos. O tom expressionista dos desenhos reforçaram a palavra de Caio, de que aqueles, ao verem Saul e Raul saindo de cabeça erguida da empresa, rumando num carro juntos, sabe-se lá para que provável ou improvável destino, para sempre seriam infelizes na sua mesquinhez.

Aqueles Dois é um sensível espetáculo político, que de forma delicada e doce faz pensar sobre a homofobia, sobre os valores e preconceitos. Mas também, é um doce retrato da obra de um autor marcado por uma década, por um tempo, querido e maldito para alguns. Uma fábula cotidiana da amizade dos personagens, mas também do grupo, que dedica o espetáculo aos amigos, a alguém querido.