O clima de repressão sexual, tônica da doença esmiuçada e estudada pela nascente Psicanálise, é a tônica de toda a peça, com respiração bastante própria no prédio escolhido, que restringia seu trânsito às mulheres. Assim, respeitando o espírito da época, o público masculino sobe na frente das mulheres, ficando em sala de espera distinta. Mais tarde, as mulheres sobem e ficam numa sala a parte, no caso das apresentações em Salvador, na capela do colégio. Ao chegarem no salão onde se dá o espaço cênico, os homens já estão posicionados, numa platéia bem montada e afastada das mulheres. Eles estão numa pequena arquibancada e de lá, assistirão distanciados às cenas.
A peça é encenada apenas durante o dia, por volta do fim da tarde, perto do cair do sol - exatamente quando a peça finda. Sem nenhum recurso de iluminação elétrica ou artificial, peça se vale da luz do sol, assim como se valiam as mulheres daquele tempo. As vestes em tons bege e salmon se mostram envelhecidas, também antigas. As atrizes parecem fantasmas de outro tempo, tamanho a realidade que se tornam seja pelo tom da voz e ritmo da fala próprio de uma outra época, seja pelo ritmo que a peça imprime, seja pelo figurino, sem nenhuma pompa, quase desbotado, seja pelo próprio lugar, que foge de qualquer artificialismo próprio ao teatro. Os artifícios e escolhas do espetáculo, de criação coletiva, presentificam aquelas histórias junto com as novas que ali serão contadas.
Já ao redor do espaço cênico, em cadeiras ou sentadas ao chão, sentaram as mulheres do público, que a partir desse momento, deixam de ser público e passam a ser tratadas como internas e acometidas do mal da histeria. A interação com as mulheres permeia a todo espetáculo. A história contada em cena deixa de ser a das cinco personagens apenas, mas também daquelas com quem as atrizes contracenam. Essa aproximação entre atores e público não só irrompe numa interatividade, mas especialmente, na estruturação de uma dramaturgia que completa seu sentido a cada apresentação. As experiências das mulheres do público contribuem como fio condutor da narrativa das mulheres.
Extremamente brancas e pálidas, as personagens denotam seu tom embalsamado, empoeirado, mas também porcelana. As bonecas de uma época que talvez hoje, objetificadas teriam cor tostada de carne, exposta para ser degustada. Se no passado, as mulheres eram louça fina, hoje somos comida quanto mais farta melhor: filé, bunda, morango, melancia.
Nos sonhos esfacelados, gritos suprimidos, julgamentos, opressões, vozes embargadas, as histórias delas atualizam as nossas. Para quem acredita que a emancipação plena da mulher já se deu e que o feminismo é arqueologia, Hysteria mostra no contato com o público atual, nas emoções que sucita que nossas vozes ainda se fazem roucas e poucos dos nossos gemidos são de gozo.
Entre as histórias, o caso de uma menina orfã, deixada na antiga roda, que guardava a vergonha das brancas que "perderam a sua honra" e que adulta ainda se comportava como menina: que destino ela podia ter, se era só e com ninguém seria digna de casar? Melhor então o refúgio da infância e a espera do noivo Jesus, que certamente, nunca viria. A mulher que sempre fora calada e cuja voz sua família nunca aguardara ouvir, passivamente, como era de sua natureza, contava sua história na medida em que ia dialogando com uma espectadora mais velha, estrategicamente sentada ao seu lado. Talvez, momento dos mais difíceis, a escolha da mulher mais velha sentada ao seu lado, revela que os sonhos, embora séculos diferentes ainda são os mesmos e as repressões e opressões não se dão de tão longe. De voz altiva e grave, havia entre elas uma mulher de consciência política, que aguardava após a libertação (virá que eu vi...) do povo negro, a libertação das mulheres. Seu dom da poesia, alma questionadora e volúpia no corpo foram a justificativa da sua internação. Talvez a loucura seja o destino daqueles que têm dúvidas e questionam...por fim, a história da mais sexual de todas, que permitiu viver uma liberdade sexual, ainda pouco bem vista em nosso tempo. Ainda nas rodas modernas, mulher que se deita com quem quer, quando quer, ainda é chamada de puta. Quem dirá em 1800 e fumacinha...
Todas elas, assim como o próprio público eram vigiadas atentamente pela enfermeira, altiva, repressora, cuja voz causa calafrios. Contudo, aquela própria mulher, a serviço do poder dos homens, também tem seu útero, também tem seus calores, também tem seus desejos e este é o grande peso da peça. Mesmo as que servem a um outro poder, são vítimas dele - algozes talvez de sua própria dor.
Hysteria dosa o dolorido com o riso. Coloca os homens como espectadores sérios, distanciados, de um mundo que eles conhecem pouco, mas interferem muito. Como o próprio programa da peça afirma a história das mulheres não é a história somente delas: suas vozes roucas contam a história de seus homens, seus filhos, uma cultura, uma repressão. Hysteria é sem dúvidas um espetáculo necessário para homens e mulheres. Para pensar no nosso tempo, a partir da história das que foram. Qual é a doença de nossa geração, meninas? Somos mesmo donas do nossos corpos? Somos tão livres? Tão libertas? Ou nossa liberdade também não faz parte da liberdade do mercado...de tudo aquilo que está a venda a qualquer preço...
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