domingo, agosto 20, 2006

As rosas de Guimarães


Então, a cena literária brasileira comemora em 2006 os 50 anos de lançamento de Grande Sertão: Veredas, nosso Ulisses. Nosso muito mais que Ulisses. Muito melhor que Ulisses. Muito mais poesia que Ulisses. Bem, isso é outra discussão, são outras palavras, é papo de literatura, não de teatro.
O fato é que as letras e as demais linguagens artísticas se voltam para homenagear este que é um dos mais importantes (se não o mais importante) livro da Literatura Brasileira no século XX. Em cartaz até o dia 27 de agosto, às 20h, na sala principal do Teatro Vila Velha, o espetáculo "Canteiros de Rosa", com direção de Jacyan Castilho e realização do Vilavox, reverencia não essencialmente "Grande Sertão: Veredas", mas seu autor Guimarães Rosa, responsável por tantas outras obras de domínio da palavra. De jogo com o verbo. Um artesão da palavra. Um operário daqueles que têm vultuosa propriedade sobre cimento, cal, argamassa. E constróem formas imponentes. Assustadoras. Delicadas.
A montagem então remonta ao universo roseano, enveredando por três contos (que infelizmente não constam no programa do espetáculo). As adaptações remontam e traduzem para o palco marcas fortes do autor: diálogos sobre a loucura, a diferença, a crueldade, poesia, tradição subsidiando a subversão do verbo, apropriação das palavras para criar outros sentidos, jogos semânticos.
E das cenas, a que melhor traduz todo esse jogo é a terceira, que como disse, não sei o nome. Trata da história de uma menina, Nininha, cujos desejos se convertiam em realidade, cujas palavras tinham um sentido outro, adverso do que pensam e falam os outros. Desejo de chuva, desejo de pamonha de goiabada, desejo de subir as estrelas. E convertida numa santa, ela atrai sobre si os olhos de todos, a cobiça de todos, que vêem nela a possibilidade de ter dirimidas suas dores.
Com delicadeza e sensibilidade a cena se resolve bem. A atriz com naturalidade encarna a estranha menina, que primeiro era olhada com desconfiança, mais tarde com fascínio. Em idas e voltas no balanço, ela leva o espectador a ver uma garota cuja boca emana poesia nova, sentido novo pra palavras velhas, vocábulos estranhos. No palco, põe em diagonal Nininha e o sertão. Sertão de dores, de seca, de cegueira, se contrapondo a um mundo úmido, mas também de encanto. Com muita delicadeza, a direção resolve bem a subida da pequena às estrelas, aproveitando com maestria as possibilidades que o espaço do Vila Velha oferece.
Na segunda cena, a loucura é festejada no homem que se passa por outros. Darandina, louco, ladrão, embusteiro, revolucionário. Um foguete que veloz escala os canteiros de obra e salta imprompérios contra a multidão, ora louca, ora sã. Ele, sim, ora revolucionário, ora temeroso, ora lúcido. Uma cena festejada com a atuação brilhante de Cláudio Machado, que imprime em dosagens cuidadosas precisão, loucura e técnica. O seu doido alça os mais altos canteiros e com precisão faz com os andaimes o que Guimarães fazia com as palavras.
E a loucura também é a história de Soroco (para mim, a cena mais reconhecidamente Vila Velha/Vilavox das cenas do espetáculo, e portanto abusa dos recursos já típicos de encenação do espaço: cenas em concomitância, repetições, coros, uníssonos, quebra da quarta parede, entradas e saídas em coro). A estranheza da personagem provoca alguma compaixão, na sua forma carinhosa de se apoiar no outro, de caminhar contra o sentido de todos. No entanto, por ser uma cena que executa tão fielmente a gramática do Vila não provoca a quebra de expectativa para os leitores mais habituados a freqüentar aquele espaço. O que talvez não seja um problema para espectadores novatos no universo do teatro do Passeio Público.
Canteiros de Rosa chama a atenção pelo investimento do Grupo Vilavox em se afirmar cenicamente como um grupo de teatro. Embora seja um grupo que ao longo de sua trajetória valoriza a voz e a musicalidade, a trupe parece ainda estar a descobrir qual é a sua linguagem, quais são os seus caminhos. Ao contrário do leve Almanaque da Lua e do político-didático Primeiro de Abril, este não é um musical, mas sim teatro. Teatro promovendo casamento com a poesia. Poesia que não é poesia, mas sim épica. Mas sim drama. Facetas tantas do que é literatura.
E em cena, brilhando mais que todos, superando qualquer coisa, está ele: Guimarães, o homem que sabe que toda saudade é um pouco de velhice. E que não teme reconhecer o óbvio de dizer que viver é muito perigoso.
Sim, Guimarães é o melhor ator da peça. Previsível.

4 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Mônica!
Gostamos muito do seu comentário sobre Canteiros de Rosa. O Vilavox ficou muito satisfeito com o seu retorno. Na falta de uma crítica presente na grande mídia, são manifestações como a sua, independente, que cumprem um importante papel de diálogo entre a sociedade e o artista. Parabéns pelo blog. Está linkado lá no nosso.

Um abraço e continue escrevendo!

Anônimo disse...

Seu comentário sobre "Canteiros de Rosa" é preciso. Considero o espetáculo belo na sua concepção, na sua direção. O universo de Rosa teatralizado na medida certa para o encantamento, para a reflexão, para a poesia. As cenas me emocionavam no tocante de sua simplicidade e ao mesmo tempo pela ousadia. A voz que cantava a dor, ecoava o ritmo das personagens entre a loucura e a lucidez teatral, a melodia, cadência das palavras, se fazia mágica e poderosa nos ouvidos sensíveis e nos olhos perplexos. A literatura rompendo barreiras, alcançando a cena, sem ser literal, mas sendo arte, emoção...VIDA.

Sílvia Câmara disse...

Mônica, achei-te por conta da Nanda e não pude me furtar em deixar um comentário no teu blog.
Parabéns pela escrita coerente, mas ao mesmo tempo apaixonada.
E pra falar do Grande Rosa há que ser assim, não?
Olha, passou uma brisa aqui, segue-a...

Danilo disse...

Atenção!

Dia 11 de setembro de 2008 às 20h terá apresentação de "Canteiros de Rosa" no Teatro Vila Velha, uma oportunidade única pra quem não pôde ver!

Ingressos: 10r$ (inteira), 5r$ (meia)

NÃO PERCAM!!