segunda-feira, novembro 28, 2005

Brincadeira Brecht

Vou falar hoje sobre uma peça que quem viu, viu, quem não viu, talvez não veja mais. Inclusive, só tenho falado sobre peças/espetáculos de trajetória bastante efêmera.
As tergiversações são as seguintes.
Nesse último sábado, fui a Sala 5 da Escola de Teatro assistir ao espetáculo "Luz", direção de Marcelo Brito, figura que conheço de vista e por poucas palavras, mas que tenho uma imagem de irreverência formada.
Ao chegar atrasada na escola, já via a movimentação dos atores acontecendo. O Bordel UFBA, com "prostitutas" oferecendo seu produto nas janelas e marquises da faculdade. A casa acadêmica profanada. Alguns atores misturados ao público reagiam de formas diversas: o bêbado, a crente, o transeunte. Na subida para a sala, atores mascarados faziam as vezes de doenças sexualmente transmissíveis. Doenças essas que eram apresentadas pelo médico e ex-frequentador da "casa de tolerância", que fazia das suas descobertas científicas um meio de ganhar dinheiro.
Durante o espetáculo, me percebia me divertindo, rindo do espetáculo proposto. Uma grande brincadeira, uma grande sacanagem. Mas na saída, ocorreu-me a pergunta: e Brecht com tudo isso? A pergunta veio porque de tanto rir com a peça, em momento algum eu cheguei a refletir sobre o problema ali proposto. E em se tratando de Brecht, eu sempre me sinto no dever e direito de pensar além da superfície.
Olhando tecnicamente, consigo rever e perceber um tanto do encenador alemão presente na peça. Mas no que se refere a recepção não consegui em mim sentir as perspectivas brechtiana. E isso me deixou um questionamento. Um questionamento sobre montar um Brecht. Sobre dialogar com esses cânones aí postos. Brecht tem regra de ser? As coisas têm que ser de acordo a pressupostos? A padrões? E toda subversão é válida?
Não cheguei a conclusão alguma. Essas perguntas todas me façam.
Da peça, posso dizer que me diverti. E é essa a minha justa questão...

domingo, novembro 20, 2005

Teatro de Fogo

Fogo queima. Que óbvio. Mas ás vezes, a gente tem a impressão que algumas chamas queimam mais do que as outras. Fogo da inspiração. Fogo da alma. Fogo da sedução. Fogo da vida. Fogo Possesso parece que reúne tudo isso. O espetáculo com texto e direção de Adelice Souza pare uma guerra no palco, uma peça Iansã.
O palco do Icba foi tomado por uma espécie de poço de fogo e destroços de carros, nos quais os atores Rodrigo Frota e Simone Brault transitam, contracenam. O som de batidas de carro, lembrando pneus cantando, riscos, fagulhas. Sob os carros, projeções de vídeos. Imagens de larvas, sangue, língua, fogo. Tudo num movimento intenso, ininterrupto, fogo queimando e levando o espectador embora.
Prometeu e Salomé se encontram numa espécie de limbo infernal, um plano para o qual os desafiantes de Deus são enviados. E nesse inferno de vermelho e metal retorcido, ambos se debatiam e esbatiam, revelando as suas chagas, as suas falhas trágicas, as suas paixões.
Prometeu Acorrentado amando sua águia. Única companhia de uma vida. Única lembrança do feito de roubar o fogo de deus e inspirar os homens. Por lhes retirar da ignorância e oferecer a chama do conhecimento.
Salomé enlouquecida e revelando uma face outra da história. Revelando seu amor por João Batista. Revelando um desejo insandecido pelo profeta. Desejando sua boca, sua carne, seu corpo. Encontrando nele também desejo, mas também repulsa. Convertendo seu amor em loucura. Dançando e pedindo sua cabeça.
E a encenação recordou-me os escritos de Artaud. Os sons estereofônicos que penentram os tímpanos e causam agonia, transe, reportam para outro lugar. O figurino de épocas indefinidas. O corpo preciso, vigoroso. As respirações cheias de emoção de sangue e vida. De uma precisão, mas de uma voracidade. De uma vida pulsando, se dilatando. Atletas emocionais eram os dois atores, assim como pedira Artaud. Atletas físicos também foram. Transitando por aqueles fragmentos de ferro retorcido, pulando, correndo, caindo. Com tamanha minúcia e precisão. Perfeitos.
A direção conferiu o tom de víceras expostas a tudo. Víceras vermelhas. Ainda vivas. Ainda coração batendo. Todo o espetáculo leva para uma atmosfera infernal, que não é clichezada, mas potente, re-significada. Os momentos de agonia, gritos, levam o espectador embora junto. Que não raro, pode querer gritar junto, pode querer libertar suas chagas junto. Expurgar sua paixão.
Esse convite só não fica ainda mais efetivo por conta do texto, que apresenta uma interessante tensão entre conteúdo e dramaturgia. Cheio de poesia, percurso filosófico, potência de palavra, idéia e discurso, o texto diz muito. Traz algumas pérolas, como afirmar que Deus é o seu desejo. Mas diz excessivamente muito frente a todos os outros signos ali implicados. Se torna excesso no que há de negativo. Porque remete a um raciocínio, a uma lógica e até mesmo a um certo didatismo, quando os atores, a encenação, os vídeos, toda a cena, já dizem muito. Já dizem tudo. Então, mais uma vez relembrando Artaud, recordo-me da passagem que ele sugere que o texto entrasse na encenação como a palavra nos surge nos sonhos. Não entra intelível, lógica completamente. Traz mensagens, discursos, mas que não são o elemento principal frente a riqueza dos outros signos ali implicados. Então, precisava o texto ser menos, menos palavra, porque a própria palavra já se fazia segundo plano na cena. A palavra aqui acabou servindo para nos roubar do sonho, do próprio inferno, do próprio desejo. Muitas vezes, quebrava o vigor ali proposto.
E falando em vigor, importante abrir um parágrafo para Simone Brault, Salomé. Para sua entrega extrema, para sua disponibilidade em cena e por conduzir com maestria o espectador para uma câmara de fogo, de ardência. A cena da dança de Salomé pedindo a cabeça de João Batista é algo fervorso. Solta fagulhas. Uma mistura de força, sedução e também de pureza. Porque a mulher que ama é sempre pura. Mesmo que a lascívia seja a sua própria armadilha. E frente a cabeça de João Batista, ela destila sua dor, sua paixão, sua loucura e seu desejo. Confesso, naquele momento, queria ser Salomé, ter levado às consequências todos os meus últimos desejos.
Rodrigo imprime verdade, sinceridade a tudo o que faz em cena. É um Prometeu Acorrentado e dilacerado. Um João Batista atormentado entre a sua fé também acorrentadora e o seu próprio desejo. Mas a própria construção dramática de paixão e desejo de Salomé, acabam elevando a personagem a um ponto de destaque, o que acaba ainda mais chamando a atenção para o trabalho de Simone.
Fogo Possesso surge como uma agradável carícia e sacudida no espectador, que tem seus fantasmas, fé e desejos remexidos. É uma agradável carícia e sacudida na cena teatral baiana, mostrando que há uma vida pulsando e possível além do óbvio, além da simples graça. É um espetáculo de fogo que pulsa e queima. É cruel e bonito.

sábado, novembro 12, 2005

Grande Passeio: agir ou contar? Eis a questão

Texto dramático é um texto que pressupõe ação, a dialogicidade, o conflito. Esta é uma conceituação, ainda que num nível primeiro e sem arestas para aberturas de confabulações. Conceituação que também não se faz fechada. No tempo em que vivemos, tudo se faz de hibridismos, de misturas, de sobreposições, montagens, colagens. Já vivemos o teatro épico, já vivemos teatro intimista, já vivemos tanta coisa.
Mas a essência, sempre será a mesma: a ação, o conflito. Assim é a arte da cena, do teatro.
E o monólogo Grande Passeio, espetáculo resultado da pesquisa da dissertação de mestrado de Ricardo Fagundes, promove uma experimentação. A transposição da história de Mocinha, uma velhinha solitária e sem família, contada por Clarice Lispector na coletânea de contos Laços de Família, é realizada para o palco. E Fagundes ocupa o papel de narrador dessa história. Um narrador idoso, que traz consigo peso dos anos e de algum modo o peso também da vida solitária e de riso mascarado da personagem.
Mas ainda assim é um narrador. Ainda que um narrador dotado de corpo preciso, de corpo que se vivifica através da técnica da mímica corporal dramática, que em momento algum o engessa, mas pelo contrário, o dota de possibilidades, de oportunidade de envelhecer com vigor.
Mas ainda assim é um narrador. Ele conta. Ele não age. Ele explica. Mas ele não vive. Por mais que viva e transmita as dores de Mocinha, o descaso, a solidão, o sorriso dilacerado daquela velhinha. Não é o sorriso dela que se vê em cena. É o dele, reproduzindo o que seria o dela.
E diante daquilo, digo. É contação de história. Não é teatro. Porque teatro pressupõe ação.
E me recordava do conto. Das provocações que o conto me faz. Da minha mente solta diante das palavras de Clarice, da sua veemência e da sua crueldade. E lembro das marcas que o conto me fez. E que não senti no monólogo, porque o fato de ser narrado me inquietava.
Esse é o cerne da minha pesquisa com Clarice. Transpor essa mulher veroz, voraz, dramática, mas que fez da sua obra narrativa para o teatro. E o espetáculo de Fagundes trava comigo um diálogo que me dá muito material para trabalho. Fiquei extremamente curiosa de conhecer sua pesquisa, qual o cerne e como foi seu processo de construção, visto que sua linha de interesse tanto tem a ver com a minha. Queria poder lhe fazer as minhas perguntas todas.
Grande Passeio, até dia 20 (sexta a domingo), às 20h, na Sala 5 da Escola de Teatro da UFBA. Vale a pena ser visto, especialmente pelos inquietos com a palavra. Um ator de domínio e precisão corporal, foco contundente, emprego da voz qualificado, um belo trabalho. Mas sinto que falta algo, falta agir.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Calçado delicado

Há uns dias atrás recebi de uma amiga um texto falando que todo mundo merecia ver O Sapato do Meu Tio. Não pude ver no dia que planejei e fui hoje por obra do acaso. Eu mereci que meu compromisso fosse cancelado. Mereci e fui ver O Sapato do Meu Tio.
E logo ao ver a carroça em cena, foi como se alguma lembrança boa me fosse acionada. Lembrança de palco, de gostar de estar nele, lembrança de nariz de palhaço, correria, riso e brincadeira. As lembranças meio que vão e vem durante todo o espetáculo, mas vão cedendo lugar a uma profunda empatia.
Empatia com os dois atores. Um Augusto menino, sensível e dedicado ao Branco, o Tio, palhaço experiente, dado a mordomias, olhar perdido e uma rotina severa para com o sobrinho. Primeiro incômodo com o tio, depois um encantamento, por perceber que por trás do mau humor havia um engenhoso projeto: transformar o garoto, num palhaço.
E este é o encanto, este rito de passagem. Esse crescimento, essa inocência do menino que se esvai. A dor de crescer, de perder a inocência, de ganhar agressividade. De se tornar esperto. Tantas provas, algumas quedas, mas o riso frouxo e a leveza de quem tem a glória escondida atrás de um nariz vermelho.
Dois atores primorosos, carinhosos e afinados (o olhar ingênuo que Alexandre Casali imprime comove e desperta carinho, já o vigor de Lúcio Tranchesi, vai dando lugar a uma doçura velada). Uma direção que demonstra intimidade com o universo do palhaço, do circo (João Lima). Figurino funcional e sempre magicamente clown de Rino Carvalho. O cenário funcional e também mágico, sempre escondendo alguma surpresa, algum detalhe. Algum signo perfeito do mundo do circo.
Mundo que a peça nos leva sem magia. Sem magia porque revela a realidade do chão duro, do sol quente, da exploração, da vaidade, da solidão por detrás do aplauso.
Um espetáculo rico, que fala não só de circulo. Mas das nossas relações. E como andamos em círculo, como nos repetimos, comos escondemos tanta coisa. Como o sorriso é fácil quando vem de um trabalho sincero.
E concordo, todos merecem se dar ao prazer de receber o carinho delicado que é assistir O Sapato do Meu Tio.

quarta-feira, novembro 09, 2005

Estranho Brecht

Tive uma aula hoje sobre Brecht. Mais uma das muitas que já tive. Mais uma das muitas que ainda terei. Então, do fragmento da aula que cheguei, me inspirei para escrever algumas linhas do que pode ser síntese deste que é consensualmente o homem do Teatro do Século XX. Haverá um para o Século XXI. Queira Deus...
Somos indivíduos devotados ao supérfluo. É o que Brecht diz, e ao contrário do que poderia se pensar, não com ressentimento, não como uma divergência. Teatro é supérfluo. E a vida devotada para o teatro é uma vida de prazer, de um outro nível de diferente das outras práticas. O teatro serve ao gozo, ao prazer. E este é o seu principal compromisso. O teatro é um artefato do prazer.
Decerto que me choquei, ao ler isso em Brecht. Mas está lá. Nos seus escritos teóricos.
Arte não é uma fatia da realidade, não é reprodução da realidade. Mas sim uma construção da realidade. A arte não está posta para refletir uma igual realidade, mas para desnaturalizar o cotidiano, para desnaturalizar a realidade. E como tal, a arte é essencialmente estranhamento.
O objetivo da arte não é produzir o perfeitamente igual ao real, mas pegar o cotidiano, o real levar ao palco e desfamiliarizar essa realidade ali reconstruída, posta. Se alcança o novo justamente a partir disso: da desfamiliarização da realidade.
O teatro de Brecht não quer então um reconhecimento, mas sim proporcionar uma nova visão dos objetos. Ele não quer a fatalidade, mas a capacidade de transformação, que vem desde o espectador, que perde a muleta da familiaridade com os objetos e ganha o dever de entrar no jogo, um jogo de construir sentidos, construir suas lógicas.
Estranho Brecht porque me deparei com um Brecht menos ortodoxo e mais vivo de contradição, de dualidade, de dialogicidade. Um Brecht devotado ao prazer e consciente da nossa alma supérflua.

segunda-feira, novembro 07, 2005

Amigos amigos...

No tal Cidades Invisíveis, sai alvoraçada querendo ver os meninos de máscaras, roupas de chita, sandália de couro. Rodei. Rodei. Desci barranco. Subi escada. Tropecei. Entrei num canto. Saí noutro até que achei numa sala, meio clara, meio escura. Lá estavam eles.
Os meninos da Finos Trapos, cuja peça vi trechinhos. Bem pouquinhos, porque era tanta coisa e tudo eu queria ver. Mas do pouco que vi, vi. Vi e senti.
Primeiro alegria. Lembro deles no primeiro semestre. Todos juntos, com aquele sotaque de gente de conquista. Gente de terra de nome bonito: Vitória da Conquista. Eta, redundância! E me emocionei. Porque meus amigos conquistenses conquistaram.
Ah, faça-me o favor, não vou ser nada distanciada. Não quero, nem consigo.
Se assim almejasse, faria o mesmo, escrevendo em jornal e na terceira pessoa.
Falo dessa galera que conheço. Que rala muito. Que mora na residência, com mofo, barata e comida lá distante, na Vitória. A que não é da Conquista.
Essa galera se despencou pra cá pra fazer teatro e faz. Na raça. Com sensibilidade e acho isso por demais bonito.
O texto era simples. Simples como tem que ser. Com a poesia do que é simples. Com o gesto de quem também é simples. Mas tem brilho no olho. Brilho de quem se entrega pra fazer teatro.
Não sei de técnica. Não parei pra procurar. Sei de gente que tava pulsando. Cantando com colorido e com alegria. E isso me fez tanto sorrir, que me deixou com os olhos rasos.
Amigos, amigos, negócios de fora. Os trapos deles são muitos finos. E que vocês sempre sejam de finos trapos.
Ah. Linda maquiagem, lindo figurino. Tinha que falar de técnica. É isso?

Dionísio Importado

Uma celebração das artes da cena. Pode ser uma definição para o que foi o evento Cidades Invisíveis, que aconteceu nos dias 4, 5 e 6 de novembro na Escola de Belas Artes da UFBA, pensado pelo Teatro de Potlach, grupo italiano em sua segunda passagem por Salvador. O grupo leva para o ambiente cênico a atmosfera do livro do também italiano Ítalo Calvino. Diferentes cidades, diferentes formas de viver e sentir a cidade. Diferentes nuances. Diferentes poeiras.
Bem, e a EBA fez-se uma espécie de cidade. Cidade reunindo diferentes expressões cênicas. Todas simultâneas. Todas muito possíveis. E todas fomando um espetáculo do excesso. Excesso no aspecto positivo e também moderno. Tudo acontecendo ao mesmo tempo, causando novos sentidos, causando devidos incômodos, causando dispersão, causando novos olhares.
E por que Dionísio Importado? Porque aquela essência dionísiaca da perda do sentido da individuação, do perder-se no meio do todo, do outro interferir no meu sentido, no meu olhar, naquilo que eu quero ter atenção. Tudo isso é coisa antiga, mas aqui, pra nossa terra parece nova. Coisa simples, que só demanda de artistas com fome de fazer, uma universidade disposta a receber. Um espaço livre para fazer e pronto. Unidos os ingredientes, logo faz-se a luz ou o bolo.
Fiquei contente, perdida entre tantas cenas. Mas também ensimesmada. Como somos provincianos... precisamos de uma tutela de fora para juntar as nossas próprias forças. Para juntar a nossa própria gente para fazer arte. Precisamos de gente de fora para abrir nossa universidade para mostrar sua própria produção.
Ah, e a minha alegria, frente ás cenas ficou meio muda. Não sabia se mais sorria, ou se me decepcionava.
O fato é que o espetáculo em si era bonito de ver. Teatro, dança, performance, graffite, artes plásticas, arte clown. Tudo concomitantemente agindo e interagindo. Certas alturas, até latinhas de skol já eram mercadas naquela nova cidade. Cidade de artistas menos invisíveis.