domingo, novembro 20, 2005

Teatro de Fogo

Fogo queima. Que óbvio. Mas ás vezes, a gente tem a impressão que algumas chamas queimam mais do que as outras. Fogo da inspiração. Fogo da alma. Fogo da sedução. Fogo da vida. Fogo Possesso parece que reúne tudo isso. O espetáculo com texto e direção de Adelice Souza pare uma guerra no palco, uma peça Iansã.
O palco do Icba foi tomado por uma espécie de poço de fogo e destroços de carros, nos quais os atores Rodrigo Frota e Simone Brault transitam, contracenam. O som de batidas de carro, lembrando pneus cantando, riscos, fagulhas. Sob os carros, projeções de vídeos. Imagens de larvas, sangue, língua, fogo. Tudo num movimento intenso, ininterrupto, fogo queimando e levando o espectador embora.
Prometeu e Salomé se encontram numa espécie de limbo infernal, um plano para o qual os desafiantes de Deus são enviados. E nesse inferno de vermelho e metal retorcido, ambos se debatiam e esbatiam, revelando as suas chagas, as suas falhas trágicas, as suas paixões.
Prometeu Acorrentado amando sua águia. Única companhia de uma vida. Única lembrança do feito de roubar o fogo de deus e inspirar os homens. Por lhes retirar da ignorância e oferecer a chama do conhecimento.
Salomé enlouquecida e revelando uma face outra da história. Revelando seu amor por João Batista. Revelando um desejo insandecido pelo profeta. Desejando sua boca, sua carne, seu corpo. Encontrando nele também desejo, mas também repulsa. Convertendo seu amor em loucura. Dançando e pedindo sua cabeça.
E a encenação recordou-me os escritos de Artaud. Os sons estereofônicos que penentram os tímpanos e causam agonia, transe, reportam para outro lugar. O figurino de épocas indefinidas. O corpo preciso, vigoroso. As respirações cheias de emoção de sangue e vida. De uma precisão, mas de uma voracidade. De uma vida pulsando, se dilatando. Atletas emocionais eram os dois atores, assim como pedira Artaud. Atletas físicos também foram. Transitando por aqueles fragmentos de ferro retorcido, pulando, correndo, caindo. Com tamanha minúcia e precisão. Perfeitos.
A direção conferiu o tom de víceras expostas a tudo. Víceras vermelhas. Ainda vivas. Ainda coração batendo. Todo o espetáculo leva para uma atmosfera infernal, que não é clichezada, mas potente, re-significada. Os momentos de agonia, gritos, levam o espectador embora junto. Que não raro, pode querer gritar junto, pode querer libertar suas chagas junto. Expurgar sua paixão.
Esse convite só não fica ainda mais efetivo por conta do texto, que apresenta uma interessante tensão entre conteúdo e dramaturgia. Cheio de poesia, percurso filosófico, potência de palavra, idéia e discurso, o texto diz muito. Traz algumas pérolas, como afirmar que Deus é o seu desejo. Mas diz excessivamente muito frente a todos os outros signos ali implicados. Se torna excesso no que há de negativo. Porque remete a um raciocínio, a uma lógica e até mesmo a um certo didatismo, quando os atores, a encenação, os vídeos, toda a cena, já dizem muito. Já dizem tudo. Então, mais uma vez relembrando Artaud, recordo-me da passagem que ele sugere que o texto entrasse na encenação como a palavra nos surge nos sonhos. Não entra intelível, lógica completamente. Traz mensagens, discursos, mas que não são o elemento principal frente a riqueza dos outros signos ali implicados. Então, precisava o texto ser menos, menos palavra, porque a própria palavra já se fazia segundo plano na cena. A palavra aqui acabou servindo para nos roubar do sonho, do próprio inferno, do próprio desejo. Muitas vezes, quebrava o vigor ali proposto.
E falando em vigor, importante abrir um parágrafo para Simone Brault, Salomé. Para sua entrega extrema, para sua disponibilidade em cena e por conduzir com maestria o espectador para uma câmara de fogo, de ardência. A cena da dança de Salomé pedindo a cabeça de João Batista é algo fervorso. Solta fagulhas. Uma mistura de força, sedução e também de pureza. Porque a mulher que ama é sempre pura. Mesmo que a lascívia seja a sua própria armadilha. E frente a cabeça de João Batista, ela destila sua dor, sua paixão, sua loucura e seu desejo. Confesso, naquele momento, queria ser Salomé, ter levado às consequências todos os meus últimos desejos.
Rodrigo imprime verdade, sinceridade a tudo o que faz em cena. É um Prometeu Acorrentado e dilacerado. Um João Batista atormentado entre a sua fé também acorrentadora e o seu próprio desejo. Mas a própria construção dramática de paixão e desejo de Salomé, acabam elevando a personagem a um ponto de destaque, o que acaba ainda mais chamando a atenção para o trabalho de Simone.
Fogo Possesso surge como uma agradável carícia e sacudida no espectador, que tem seus fantasmas, fé e desejos remexidos. É uma agradável carícia e sacudida na cena teatral baiana, mostrando que há uma vida pulsando e possível além do óbvio, além da simples graça. É um espetáculo de fogo que pulsa e queima. É cruel e bonito.

Um comentário:

Anônimo disse...

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- Norman