quarta-feira, novembro 28, 2007

Feminino, repressão, nossos tempos

Ainda que sob discrição, sob as vestes de um país exuberante e moderno, nessa terra corre nas veias a febre do machismo. Por aqui, as mulheres ladras são encarceradas junto a dezenas de homens. Porque para mulher não basta pagar, cumprir pena. Antes do julgamento, tem que servir a uma manada, com seus olhos, mãos, sexo e sangue. Tem que servir em bandeja a sanha cruel de delegados, outras mulheres delegadas. Precisam ser a chacota. A diversão. O esquecimento. E em rede nacional se discute: era menor? Era louca? Eles não sabiam a idade dela. E eu me pergunto: e isso interessa? Ela era mulher e ponto. Dane-se a idade. Não devia ser obrigada a servir ninguém em troca de comida, de água, ou da própria vida. Era mulher e pronto. Isso devia bastar.

A Casa de Bernarda Alba

Sei que não tem relação direta. Mas enfim, começo a falar sobre A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca, encenada, traduzida e adaptada por Fabiana Monçalu, a partir da reflexão sobre o feminino, o que é ser mulher por essas terras de cá. Embora falando de um outro tempo, de um outro parâmetro, as palavras de Lorca estão longe de serem anacrônicas, estão longe de terem menos sentido. Ainda é tempo de repressão. Ainda é tempo de corpos femininos reprimidos, minimizados. Ainda é tempo de mulheres de grito abafado, de gemidos em silêncio.

Lorca afeito às narrativas sobre o matriarcado traz à tona a história dessa família de mulheres capitaneadas pela matrona Bernarda. Encarceradas e vigiadas pela mãe, essas mulheres não saem de casa, nem conhecem homem. Não há na vila, varão digno de desposar uma das cinco filhas da matriarca. Não há homem, exceto Pepe Romano, sujeito mais apessoado da comunidade, que estranhamente mostra-se encantado pela mais velha e feia, mas também mais rica das filhas de Bernarda.

E a história se desenovela nesse ambiente causticante, asfixiante. Desde cedo elas sabem que devem servir ao seu homem, pouco perguntar, apenas responder, reagir. Olhar se eles as olham. Falar se eles com elas falam.

Para encenar esse clássico da dramaturgia de língua latina, Fabiana Monçalu recorre a diversos elementos que contribuem para que suas atrizes e atores mergulhem no universo de Lorca, levando consigo o espectador, que é convidado a adentrar na intimidade da casa de Bernarda. A opção por realizar o espetáculo no velho solar do tradicional Colégio Dois de Julho, no bairro do Garcia, em si já leva o receptor para dentro de um ambiente antigo, decadente numa medida, mas também austero e aterrador. Ainda que arruinado, o ambiente recorre a uma imponência, não diferentemente daquela família, ora sem homens, já sem riquezas, de luto e sem espaços para o sorriso.

A diretora fez a opção de ter como intérprete de Alba um ator (Amarílio Sales, que defende a sua personagem com maestria e presteza), que em muitos momentos pode confundir o espectador, com tamanha feminilidade, mas também contundência com que vive a matriarca. A escolha remete ao entendimento que embora sob saias e vestes de fêmea, Bernarda não defende interesses do feminino, mas colabora para a manutenção de um poder, de uma ordem favorável ao gênero dos machos. Esta mãe, sob o discurso da moral, da decência e do nome da família, asfixia suas filhas, mas especialmente oprime em si e no outro o feminino.

Outra escolha bastante funcional é pela ênfase corporal na construção das personagens, que trazem um que de zoomorfo, animalesco. São mulheres cobra, cavalo, pássaro. Com seus tiques, com seus corpos vivos, olhos arteiros, de águia. Corpos vivos e expressivos que não deixam escapar a palavra bem dita e valorizada em todo o texto. Juntos, corpo e palavra levam o espectador em uma dança frenética, mas também tensa. As coreografias pontuam os momentos críticos do texto, dinamizando a encenação, mas especialmente contribuindo na narrativa e na ação.

Outro homem interpreta uma mulher, a criada La Poncia (muito bem vivida pelo ator André Rosa), que tem a língua solta para questionar as atitudes de Bernarda. Diferentemente das demais personagens que de luto vestem o preto, La Poncia traz as vestes coloridas e vivas. Pois talvez ela seja a única nessa condição. Seja a única a ter voz e liberdade, ainda que subordinada socialmente e financeiramente. Mas sim, aqui também se vê um homem.

E em busca de ar e vida, essas mulheres desejam esse único homem próximo, Pepe Romano, homem que não as ama, não as salva, mas é sim, pivô da desdita de todas. A tragédia se afirma, mas ordem não se altera. Bernarda continua no seu lugar de poder, ainda que sob os gritos, gemidos e sangue de suas meninas.

E oprimida, eu saio do teatro a pensar: é isso uma antiga ficção? Seria mesmo?

A Casa de Bernarda Alba

Direção e Adaptação: Fabiana Monçalu

Onde: Solar Conde dos Arcos - Colégio Dois de Julho (Av. Leovigildo Filgueiras - Garcia)

Quando: sexta, sábado e domingo, às 20h


2 comentários:

Anônimo disse...

Moniquete,
seu comentário sobre "A Casa..." vai fundo na questão.
Pode ser uma obra de ficção e estar "lá", "no palco", mas a dor de cada uma daquelas mulheres encarceradas é a dor de todas nós.
Falei com vc em particular, mas agora torno público: o orgulho que tenho de ter participado, ainda que discretamente, deste projeto, é enorme.
Um beijo!
Ana Fê

Ana Fernanda disse...

Agora, com seis indicações!