quarta-feira, outubro 29, 2008

Por Elise: se envolver ou não, eis a questão


Um dos espetáculos mais aguardados no Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia foi Por Elise, do Grupo Espanca!, de Belo Horizonte (MG). A primeira montagem da trupe vem caindo nas graças do público e crítica desde 2005, quando de sua estréia. De lá para cá, acumulou os prêmios da APCA, na categoria Dramaturgia e Shell de Teatro de São Paulo, em 2006. No palco, cinco atores: Grace Passô, Gustavo Bones, Marcelo Azevedo, Paulo Castro e Samira Ávila.

De uma completa escuridão surge o tronco de um homem, que desenha movimentos no ar. Ao fundo, palavras se inscrevem no fundo do palco, como projeções de um vídeo. "Eu vou cuidar do seu jardim". O palco nu muito escuro propiciava que aquele homem dançasse numa profunda solidão e com os olhos no horizonte. Outros atores entram em cena, olhos também no horizonte. Uma mulher de vermelho. Um homem vestido de espuma. Um jovem vestido de moletom. Um lixeiro. A luz muito escura, os reveste na escuridão solitária.

Quando, então, surge no canto esquerdo uma mulher, de vestes de dona de casa e fala segura. Ela diz contar histórias. Vir ali para contar histórias, para falar de muitos, das esquisitices e incongruências do mundo. Como a dela, de um dia ter plantado um abacateiro cujo crescimento fugiu ao seu controle: ele alça as alturas e atemoriza por derrubar grandes abacates a todo momento. Por conta disso, a mulher vive sobressaltada olhando para o alto. Eis então que surge uma das frases núcleo do espetáculo: cuidado com o que você planta, porque pode fugir ao seu controle. Mais uma recomendação ao espectador, aos atores ao lado: não precisa se envolver com tudo. No palco, não é preciso se envolver, existem técnicas, recursos, treinamento. Não precisa se envolver - o não envolvimento impede sofrimento. Cuidado. Mas ela mesma lança um paradoxo: mas não tem jeito, gente se envolve com tudo, gente sente, gente viva sente.

As frases ditas pela personagem são fortes firmes. Quase que como conceitos ditos sob olhos faiscantes e firmes da atriz, que também dirige e assina a dramaturgia do espetáculo, Grace Passô. Com poucos movimentos, mas inteireza na palavra, a atriz ganha o espectador com a clareza com a que afirma suas idéias, suas metáforas. Metáforas transformadas em abacates e jardins. Sem dúvidas, a propriedade da autora/atriz retira da poesia a pompa que lhe parece ser própria na boca dos atores. A palavra-poética-dramatúrgica se faz palavra-orientação, palavra dita. Objetivamente poética.

A moça de vermelho se encontra com o lixeiro e lança-se na aventura de correr. Correr para conhecê-lo, correr para encontrá-lo, correr para fugir de si, da sua solidão do sacrifício do seu cachorro. Nas corridas, o encontro e o encanto - ele tinha alguma espécie de alegria, que por hora ela não detinha. E ele corria, corria, corria pelo ofício, corria pelo sonho de ver o mar. Era então, a metáfora do forte cavalo alado a caminho do mar. Força que ela clama e se identifica no fim do espetáculo, sozinha no palco negro vestida em vermelho: eu sou um cavalo vermelho correndo a caminho do mar. Embora o encontro, o encanto, a identificação, o beijo não se fez concreto ou possível - ele estava sujo.

Há ainda o homem vestido em espuma, cuja função é sacrificar animais. Vestido de espuma ele não sente. Para o bem, para o mal. Vestido de espuma ele não corre riscos, ele não se envolve, por isso, sem pena, sacrifica. Sacrifica em nome do seu sonho: ir para o Japão. Ele também se encontra com o lixeiro, que o toca sem tocar, apenas com as perguntas: você tem religião? você não sente? Então, com palmas, ele meio que desabroxa o gelo que há em si e canta pelo cuidado do seu jardim. Onde está Deus?

O rapaz que corre, corre para o encontro de sua história, para descobrir os rumos do seu pai, que saira para comprar cigarros e nunca mais voltara. Encontro que não fora possível. A dona de casa conhecera o pai do rapaz, remete a sua despedida e a um possível amor do pai pelo filho. Para não destroçar a esperança e sentido de vida do rapaz, ela fala então de carinhos e pensamentos do falecido para seu filho. Embora decepcionado com o desencontro, com a espera, com a solidão, com a frustração, ele chora, mas volta a correr.

Então o homem de espuma encontra a dona do cachorro, que fugia intensamente desse encontro. Ao encontrar a dor daquela mulher em perder seu companheiro, único companheiro, ele inevitavelmente se envolve. Eis o paradoxo. O cão é humanizado num dos atores, que desempenha com muito valor, aproximando-se da fisicalidade do cão, do seu temperamento, das reações e olhares. Sem dúvidas, uma das interpretações que mais chamam a atenção no espetáculo, bem como emocionam. Como tirar a vida de um animal que garantia a vida de outra pessoa.

Por Elise, então, desenha o seu paradoxo, a contradição do nosso tempo: envolver-se ou não. Será preciso envolver-se? Para que? Temos as técnicas, as tecnologias, os saberes, os conhecimentos, conhecendo mais sofre-se menos. Mas gente sente. Mesmo que não queira, mesmo que não saiba, que não tenha consciência. Optando por um palco nu, vazio, preciso, desprovido de elementos de cena (além dos abacates), a encenação preenche o vazio com o movimento, com a palavra. Com a repetição agregadora, com a volta do texto ressignificado, questionado, revisto quase que dialeticamente.

A espuma que reveste o homem impede de acordá-lo. Por Elise se faz então como busca de penetrar nos corpos vestidos de espuma. E o faz. Ainda que se saiba estar diante de uma fábula, mas uma fábula que diz de um cotidiano, de solidões, de incertezas, de contradições. Cuidado com o que planta: que o envolvimento não paralise, que a fuga do envolvimento não engane.
Por Elise se lança como um espetáculo de silêncios e sons, de escuros e vermelhos. De uma solidão preenchida por personagens que existem por si só, às vezes sem um passado, às vezes com um presente suspenso. Personagens metáforas que transitam entre os abacates. Abacateiros de metáfora e de envolvimentos.

Um comentário:

Claudia disse...

Oi Mônica! Também gostei do seu blog. Você ganhou uma leitora nova :)

Forte abraço