terça-feira, maio 23, 2006


Sinto que vai ser um pouco complicado fazer um comentário sobre o espetáculo "Seu Bomfim" (solo de Fábio Vidal, em cartaz às sextas e sábados no Teatro ICBA, às 20h, até o dia 17 de junho). Acho que pelo fato de ter assistido umas quatro vezes, e a cada vez mais me ver envolvida com a narrativa e com a atuação do intérprete.
Rasgar seda não é tarefa que me agrada. Então, eis um têntame de técnica e de crítica.
Vidal retira da narrativa literária a figura de Seu Bomfim, o narrador do conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa. Encarna as palavras cheias de dramaticidade e crueldade de Rosa, criando um personagem vigoroso, real, verdadeiro e crível. Encarna um daqueles sertanejos, escondidos por de trás de roupas sujas, fala truncada de palavreado tão nosso e tão novo.
Palavras de crueldade artaudiana. Sim, crueldade de radicalidade. Seu Bomfim mergulha num universo de radicalidade de vida, de intensidade de vida. Da malignidade, do mistério, da loucura, dos desejos, da animalidade, dos medos, da vida. Tudo pulsando nas veias daquele homem sem uma das pernas e cheio de memórias.
Corpo de crueldade. Porque Vidal mergulha numa experiência corporal profunda de pesquisa e de construção de um personagem crível, verossímil e impecável. Seu corpo transmutado é de uma dura poesia. A precisão física de Vidal demonstra o apuro técnico tão requisitado por Artaud, que clama por um ator atleta das emoções. Completamente consciente de seus limites e disposto a superação. Completamente técnico. Completamente consciente das emoções e de suas chaves de abertura.
Vidal realiza um rico jogo com as palavras, repetindo, cansando, fixando, pontuando o significado daquilo que interessa. Cada repetição não chega enfadonha, mas sim resignificada, fortalecendo as idéias, as ânsias daquele homem mergulhado em sua própria solidão.
E assim é que é a pergunta do espetáculo: pra que tanta solidão? Pra que tantos dias de dor nessa terra árida ou sufocante de tanta chuva? Que fazemos aqui, errantes, sonâmbulos, multilados e cegos?
Apenas a experiência crua de viver e se entregar pode oferecer respostas ou quem sabe novas possibilidades de pergunta.
E o sertão é o mundo. Ser tão é o mundo. Ora se é.

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