segunda-feira, novembro 03, 2008

Comentário sobre AQUELES DOIS

A Cia. Luna Lunera decidiu transpor para a linguagem do teatro o conto Aqueles Dois, do gaucho Caio Fernando Abreu, integrante do livro Morangos Mofados, um dos mais importantes da década de oitenta. Para o palco, os atores recriaram a atmosfera do autor, a tessitura de sua escrita encarnada nos corpos, nas disposições, na palavra revivida, mas também em referências de uma época, seja musicalmente falando com citações de Ângela Ro-ro-ro, Cazuza, Gal Costa, seja resgatando as velhas máquinas de escrever, as formas das luminárias, a memória de filmes antigos.

A montagem de Aqueles Dois transpõe para a cena a dúbia atmosfera de amizade e amor dos personagens Saul e Raul, jovens promissores, admitidos numa repartição. Naquele que era um deserto de almas, como bem define Abreu, aquelas duas almas igualmente especiais se encontraram, se conheceram e ganharam intimidade. Um do Norte, outro do Sul, ambos eram pessoas sós e estrangeiras na grande São Paulo, onde encobertos pelo cinza, nunca se sentiram em casa – exceto até o encontro de um com o outro. Caio convoca então a uma amizade cheia de descobertas, de encontros e Saul e Raul, cujo nome se confunde, facilmente poderiam reconhecer um como se fosse o outro, quase como um espelho. As semelhanças constituíram a liga daquela amizade, que logo causaria estranhamento e desconfiança nos colegas, tipicamente conservadores e como tal, homófobos.

Ao entrar na sala de espetáculos, o público se depara com um tatame como palco. Em volta dele, a delimitação do espaço cênico, com máquinas de datilografar, luminárias de mesa, livros, gavetas, discos, aparelhos de som. Os atores já estão em cena, movimentando-se e fazendo exercícios de contato-improvisação (técnica de dança na qual os corpos se tocam num ponto, desencadeando movimentos a partir daquele encontro). As partituras físicas demonstravam encontros e contrapesos. Encontros, abraços e tensões. Encontro físico, vontades de ir para outras direções. Um dos atores, controlava a entrada do público, bem como lia trechos de cartas de Caio Fernando Abreu.

Os discos, as músicas serviam não só para relembrar uma época, mas respirar o espírito de Caio, mas também montar as identidades dos dois personagens. Por outro lado, toda aquela identidade evoca ícones brasileiros fundamentais para cena gay, que tem como inspirações artistas como Maria Betânia, Cazuza, entre outros dos muitos citados. Essa identificação tanto aproxima de uma atmosfera, quando inicia uma pergunta dúbia sobre o que seriam aqueles dois.

Os quatro atores em cena dividem-se e multiplicam-se na tarefa de viver Raul e Saul, mas também outros trabalhadores da repartição. Conseguem entre si criar um nivelamento na interpretação, onde todos tornam-se parecidos, todos mantém uma unidade e alinhamento na representação daqueles dois personagens. Ao mesmo tempo em que os quatro são dois, a integração dos atores promove que os quatro, sejam dois e sejam um – como assim é o encontro maravilhado de duas pessoas igualmente especiais, igualmente semelhantes, seja em gostos, sejam em gênero. Raul e Saul, como a escolha de seus nomes já indicam, são um Narciso ensimesmado diante do espelho, apaixonado por si mesmo.

A passagem de tempo na peça é trabalhada de forma criativa: o número de vezes, que os personagens vão tomando café, revelam a maior intimidade que vão ganhando, enquanto que as sucessões de bom final de semana, demonstravam a falta de novidade e tédio daquele ambiente de trabalho: um ambiente onde as quermesses, falatórios, olhares, festinhas e rifas serviam como quebra da mediocridade reinante. Eles mostravam-se então diferentes, mais bonitos e interessados em suas solidões.

A peça acerta na adaptação, misturando momentos de ação propriamente dita, com a narração e o apoio na palavra do conto de Caio Fernando Abreu – esse trânsito entre a ação dos atores e a narração do conto se mostram como um deleite, repensando algumas cenas já vividas na própria encenação, lançando mais luz sobre a amizade daqueles dois.

A imagem e a palavra casam com felicidade em alguns momentos. O abraço de reencontro dos amigos, após a perda da mãe de um deles. Os corpos nus em meia luz – luz essa que reflete a tensão do desejo e vergonha de ambos, por estarem desnudos um diante do outro – com a escuridão cortada pela brasa dos cigarros acesos. Por fim, os muitos desenhos feitos por Saul, os grandes olhos sem iris, citados no conto, que aqui ressignificados se mostram como os colegas homófobos atrasados e eternamente presos às suas mentalidades e preconceitos. O tom expressionista dos desenhos reforçaram a palavra de Caio, de que aqueles, ao verem Saul e Raul saindo de cabeça erguida da empresa, rumando num carro juntos, sabe-se lá para que provável ou improvável destino, para sempre seriam infelizes na sua mesquinhez.

Aqueles Dois é um sensível espetáculo político, que de forma delicada e doce faz pensar sobre a homofobia, sobre os valores e preconceitos. Mas também, é um doce retrato da obra de um autor marcado por uma década, por um tempo, querido e maldito para alguns. Uma fábula cotidiana da amizade dos personagens, mas também do grupo, que dedica o espetáculo aos amigos, a alguém querido.

Um comentário:

Anônimo disse...

Moniquinha meu amor, eu creio que aqui você recai naquele mesmo erro de Hysteria, seguindo um tendência descritiva da peça, o que não é a função da crítica.
Você tem tudo para desenvolver um bom trabalho de crítica pois você possui conhecimento de técnicas e tendências cênicas que lhe possibilitariam avaliar os espetáculos, além de possuir um ótimo poder de captar as mensagens subliminares das obras.
Creio que você só tenha que evitar a descrição da peça como foco e valorizar mais o que você tem de melhor, a análise técnica e o diálogo entre texto, dramaturgo, público e realidade.
Bjs e admiro muito sua personalidade!